Descer do monte, subir à cruz, ressuscitar

Sem a luz que vem da cruz, sete palmos de terra são o suficiente para montar uma tenda e viver morrendo ali, deixar-se estar sem presente nem futuro, adormecer sem esperança nem caminho, matando o sonho de chegar a algum lugar.
Com a luz que vem da cruz, subir é mais urgente. Deixar tudo e ir embora, partir para longe sem destino, ouvir a voz do sonho e despertar, vencer a solidão e a preguiça, acolher em cada dia a sua bênção, caminhar. Se a luz que brilha em mim é a presença de um Deus que sobe à cruz, então é sempre bom deixar a tenda da nossa realidade e partir até onde ele nos levar.

LEITURA I Gn 12, 1-4a

Naqueles dias, o Senhor disse a Abrão: «Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te indicar. Farei de ti uma grande nação e te abençoarei; engrandecerei o teu nome e serás uma bênção. Abençoarei a quem te abençoar, amaldiçoarei a quem te amaldiçoar; por ti serão abençoadas todas as nações da terra». Abrão partiu, como o Senhor lhe tinha ordenado.

Abraão converte-se de tal modo ao projeto de Deus que deixa tudo o que faz parte da sua vida e inicia um caminho novo, rumo a uma terra desconhecida, fiado apenas na garantia de que o acompanhará a bênção de Deus.

Salmo responsorial Sl 32 (33), 4-5.18-19.20.22 (R. 22)

A confiança do salmista, desperta a nossa confiança no Senhor que, pela sua palavra, criou os céus. A bondade do Senhor, a sua justiça e o seu amor, manifestado desde a criação do mundo, é razão suficiente para o louvar e confiar nele.

LEITURA II 2Tm 1, 8b-10

Caríssimo: Sofre comigo pelo Evangelho, apoiado na força de Deus. Ele salvou-nos e chamou-nos à santidade, não em virtude das nossas obras, mas do seu próprio desígnio e da sua graça. Esta graça, que nos foi dada em Cristo Jesus, desde toda a eternidade, manifestou-se agora pelo aparecimento de Cristo Jesus, nosso Salvador, que destruiu a morte e fez brilhar a vida e a imortalidade, por meio do Evangelho.

O desânimo de Timóteo leva Paulo a escrever-lhe uma segunda carta para lhe recordar o dom que recebeu de Deus e o poder do evangelho. Salvos por Deus e chamados à santidade, não podem permitir que o sofrimento que experimentam, por causa do evangelho que anunciam, se torne inútil pela falta de confiança em Cristo, vencedor da morte.

EVANGELHO Mt 17, 1-9

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e levou-os, em particular, a um alto monte e transfigurou-Se diante deles: o seu rosto ficou resplandecente como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E apareceram Moisés e Elias a falar com Ele. Pedro disse a Jesus: «Senhor, como é bom estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias». Ainda ele falava, quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra, e da nuvem uma voz dizia: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O». Ao ouvirem estas palavras, os discípulos caíram de rosto por terra e assustaram-se muito. Então Jesus aproximou-Se e, tocando-os, disse: «Levantai-vos e não temais». Erguendo os olhos, eles não viram mais ninguém, senão Jesus. Ao descerem do monte, Jesus deu-lhes esta ordem: «Não conteis a ninguém esta visão, até o Filho do homem ressuscitar dos mortos».

Com a cruz no horizonte e o receio dos discípulos que não entendem Jesus, quando ele fala do que se vai passar em Jerusalém, Mateus relata o episódio da transfiguração. Apresentando-se diante de Pedro, Tiago e João, como Filho de Deus, Jesus pretende animá-los para abandonarem as esperanças humanas e confiarem na salvação que virá com a sua ressurreição.

Reflexão da Palavra

O chamamento de Deus a Abraão surge após onze capítulos em que o livro de Génesis se ocupa com a descrição dramática do início da história da humanidade. De facto, a criação do homem aparece marcada pela negação de Deus, a recusa do irmão, a infidelidade de um povo, o que obriga Deus a desistir da humanidade enviando o dilúvio. Com Abraão, Deus dá início a uma nova história, a um novo povo, a uma nova aliança, para concretizar o seu plano.

A partir do capítulo 12 de génesis a história leva-nos de Abraão até ao Sinai, ponto alto desta etapa da história da salvação. O pequeno texto que se escuta neste domingo apresenta a vocação de Abraão.

Ao ouvir a voz de Deus, Abraão converte-se a ele, aderindo ao seu projeto e levando atrás de si um povo mais numeroso que as estrelas do céu e que as areias da praia. A iniciativa de Deus, exige que Abraão rompa com as suas raízes, com o seu passado, com o seu povo, com a sua família, com o seu pai, para abraçar o desafio de ir para outra terra, num longo e incerto caminho, em que conta apenas com a bênção de Deus, para si a para os seus descendentes. A este desafio, Abraão não responde com palavras mas com a decisão de obedecer, pondo-se a caminho.

O salmo 32, formado por vinte e dois versos dos quais escutamos apenas alguns, seis em concreto, é um hino que convida ao louvor a Deus. O nome do Senhor repete-se insistentemente: “Exultai no Senhor… louvai o Senhor” convidando ao louvor, no início, e “a nossa alma espera o Senhor… em vós esperamos, Senhor” manifestando confiança e esperança, nos últimos versículos. Louvamos a Deus e confiamos nele porque, pela sua Palavra criou os céus, desfez os planos dos pagãos, fez justiça ao seu povo e manifestou a sua bondade.

Paulo sabe que Timóteo está a passar um momento difícil no exercício da missão que lhe confiou na comunidade cristã de Éfeso, da qual é responsável. Paulo sente alegria em Timóteo, porque ele é um homem de fé, como o foram a sua mãe e a sua avó, mas sabe que este momento é para ele um vale de lágrimas.

Sabendo isto, Paulo anima Timóteo a reacender o dom de Deus que recebeu pela imposição das mãos e em seguida, pede-lhe que não sofra em vão nem sozinho. O seu sofrimento, a causa das suas lágrimas, é o evangelho que os dois anunciam. A única força para enfrentar a provação é a força de Deus, porque “Ele salvou-nos e chamou-nos à santidade”. O evangelho que eles anunciam é poder sobre a morte e fonte de vida eterna manifestada e revelada em Jesus Cristo.

O texto de Mateus 17, 1-9, está antecedido do primeiro anúncio da paixão que provocou em Pedro uma reação negativa, contrária ao plano de Deus, e dos critérios para ser discípulos de Cristo. Jesus pretende claramente dizer a Pedro que, negar a cruz, é recusar-se a ser seu discípulo: “se queres ser meu discípulo toma a tua cruz e segue-me”.

No contexto da repreensão de Jesus a Pedro e do anúncio da paixão, a transfiguração aparece, seis dias depois, como o anúncio da vitória sobre a morte e da glória que se segue à cruz. Estamos perante uma manifestação de Jesus como Filho de Deus. O rosto como o sol, as vestes como a luz, a presença de Moisés e Elias, a nuvem que esconde o rosto de Deus e a voz que revela o filho, falam de uma manifestação divina centrada em Jesus. A recomendação de Jesus aos apóstolos aponta para a concretização definitiva do que eles ali presenciaram, mas após a paixão, quando ele ressuscitar.

Meditação da Palavra

No meio do entusiasmo dos discípulos, por verem Jesus rodeados de multidões que vêm para escutar as suas palavras cheias de graça e ver os seus milagres tão extraordinários, a pergunta de Jesus, “Quem dizem os homens que eu sou?”, soa como um desafio que vai ainda mais longe quando ele os questiona diretamente “E vós, quem dizeis que eu sou?”.

A esta questão, sabemos, Pedro dá uma resposta divinamente inspirada, mas não suficientemente assumida, porque ele ainda está demasiado agarrado às esperanças humanas que falam de um messias guerreiro. É por isso que tem dificuldade em aceitar o anúncio da paixão, quando Jesus diz que tem de ir a Jerusalém onde vai ser preso e sofrer muito e morrer, antes de ressuscitar. Agarrado à ideia de um messias vitorioso, aclamado pelas multidões, capaz de vencer exército poderosos, Pedro não permite a si mesmo uma mudança de mentalidade, não se deixa desinstalar pelo anúncio e pela pessoa de Jesus, e rejeita a ideia: “Isso nunca te há de acontecer”.

Ser discípulo implica fazer caminho atrás de Jesus. Sair de onde se está instalado, deixar a tenda, agarrar a cruz, subir na esperança e descer nas expetativas, subir até à Jerusalém, até à cruz para chegar à glória.

A transfiguração no cimo do monte, diante de Pedro, Tiago e João, é uma manifestação de Jesus como filho de Deus, mas não significa ficar ali para sempre, significa um ponto de paragem para logo seguir para Jerusalém ao encontro da cruz.

Diante de Jesus transfigurado, Pedro encontra uma nova oportunidade para não ir até à cruz: “Senhor, como é bom estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tendas”. No entender de Pedro, ficamos já aqui, não é necessário ir mais longe. No entanto, o caminho para Jerusalém está aprovado pelo Pai que, interrompe as palavras de Pedro e diz: “Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O”.

O Pai confirma tudo o que o Filho tem dito e feito, a todas as suas decisões, também à decisão de subir a Jerusalém. Pedro vê-se a descer do monte para ter que subir e, de muitos modos, vai descer e subir acompanhando Jesus, até que esteja disponível para abraçar a cruz como um discípulo.

Muito antes de Pedro, Abraão compreendeu que, para chegar ao conhecimento do Deus único, tinha que deixar a tenda do seu conforto e fazer caminho, subindo e descendo até chegar à terra onde se cumprem todas as promessas: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te indicar”. Deixar, largar, sair, partir é a grande bênção de Deus. A bênção de Abraão e para os seus descendentes dá-se no caminho para algum lugar.

Paulo compreendeu isso e não parou de caminhar desde o seu encontro com Jesus no caminho de Damasco e ensina Timóteo que o sofrimento, as lágrimas as dificuldades impostas a quem anuncia o evangelho são caminho de cruz para os discípulos de Jesus chegarem à ressurreição. Põe os olhos em Cristo “que destruiu a morte e fez brilhar a vida e a imortalidade, por meio do evangelho”, diz Paulo.

Os discípulos de hoje, nós os que escutamos a palavra deste segundo domingo da quaresma, e nele contemplamos Jesus na sua transfiguração, aprendemos com Jesus a largar tudo para subirmos a Jerusalém, para subirmos à cruz e da cruz subirmos ao céu onde se cumprem todas as promessas. É este o caminho da quaresma, um caminho em que se sobe, descendo até ao desprendimento, aceitando a humilhação, desejando a entrega total, abraçando a morte, para chegar à vida.

Rezar a Palavra

Mergulhado na tua luz divina, oiço a voz do Pai e levanto-me como Abraão, limpo as lágrimas como Timóteo, e sigo-te para aprender, como Pedro, que o discípulo vai atrás do mestre até à cruz. Que a tua luz ilumine sempre este meu caminho para Jerusalém e que a certeza da tua ressurreição dissipe o medo de chegar. Que me abrace a luz do teu amor porque em ti espero, Senhor.

Compromisso semanal

Que o desânimo não vença a minha vontade de seguir com Jesus até à cruz.