Uma Igreja de portas abertas e cheia de Tomés

O sismo que rolou a pedra do sepulcro fez cair as trancas das portas onde se fecham os que vivem só para si, os medrosos e os incrédulos.

Uma luz fez brotar a alegria e um sopro despertou os corações. Todas as coisas perderam o pronome possessivo “meu”. Os pés dos apóstolos tornaram-se lugar comum e as suas mãos manifestação da misericórdia divina.

Todos são filhos, todos são irmãos, todos são Tomé, todos gritam numa só voz “meu Senhor e meu Deus”.

LEITURA I At 4, 32-35

A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma; ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas tudo entre eles era comum. Os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus com grande poder e gozavam todos de grande simpatia. Não havia entre eles qualquer necessitado, porque todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas e traziam o produto das vendas, que depunham aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade.

Os cristãos da primeira hora vivem a experiência de uma vida nova que se transforma em testemunho no meio do mundo. Trata-se de viver unidos num só coração e numa só alma, a experiência do amor, da unidade e da partilha.

Salmo 117 (118), 2-4.16ab-18.22-24 (R. 1)

O salmo 117 canta o dia em que Jesus ressuscitou como o dia do Senhor, um dia de grande alegria.

LEITURA II 1 Jo 5, 1-6

Caríssimos: Quem acredita que Jesus é o Messias, nasceu de Deus, e quem ama Aquele que gerou ama também Aquele que nasceu d’Ele. Nós sabemos que amamos os filhos de Deus quando amamos a Deus e cumprimos os seus mandamentos, porque o amor de Deus consiste em guardar os seus mandamentos. E os seus mandamentos não são pesados, porque todo o que nasceu de Deus vence o mundo. Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. Quem é o vencedor do mundo senão aquele que acredita que Jesus é o Filho de Deus? Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo; não só com a água, mas com a água e o sangue. É o Espírito que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade.

Jesus é o Filho de Deus e todo o que acredita nele adquire uma nova vida marcada pelo amor a Deus e aos irmãos e concretizado nos mandamentos. A vitória sobre o mundo está no encontro com Deus e com os irmãos no amor.

EVANGELHO Jo 20, 19-31

tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor. Jesus disse-lhes de novo: «A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos». Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Disseram-lhe os outros discípulos: «Vimos o Senhor». Mas ele respondeu-lhes: «Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado, não acreditarei». Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa, e Tomé com eles. Veio Jesus, estando as portas fechadas, apresentou-Se no meio deles e disse: «A paz esteja convosco». Depois disse a Tomé: «Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente». Tomé respondeu-Lhe: «Meu Senhor e meu Deus!». Disse-lhe Jesus: «Porque Me viste acreditaste: felizes os que acreditam sem terem visto». Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

Os apóstolos, fechados em casa, e Tomé, ausente da vida comunitária, revelam o medo e a cegueira em que muitas pessoas vivem por não se encontrarem com Jesus ressuscitado. A comunidade cristã tem em si os ingredientes para um verdadeiro encontro com Cristo ressuscitado, princípio da verdadeira alegria.

Reflexão da Palavra

Depois do primeiro resumo apresentado em Act 2,42-47, onde se diz que todos os crentes vivem unidos e possuem tudo em comum, surge um novo resumo em 4,32-37, que se lê neste segundo domingo da Páscoa. Se, no primeiro resumo se atende especialmente à parte espiritual como sinal da comunhão entre todos os membros da comunidade, neste segundo resumo a prioridade vai para a partilha de bens materiais.

Os crentes vivem unidos, têm os mesmos sentimentos e põem tudo em comum. Os apóstolos continuam a anunciar a ressurreição de Jesus, apesar de terem sido proibidos de o fazer e isso resulta numa “grande graça” para todos. Com os donativos provenientes da venda de propriedades, terras e casas, os apóstolos assistem os mais pobres de modo que, não há “entre eles qualquer necessitado”. Os bens distribuídos não são só materiais, são também as graças de que cada um necessita.

Tal como no domingo de Páscoa o salmo 117, o último do grupo de salmos do hallel, é o escolhido para dar graças pela bondade do Senhor. A casa de Israel e a casa de Aarão, isto é, todo o povo de Deus, proclama a misericórdia do Senhor, porque o Senhor “fez prodígios” e “não me deixou morrer”.

João, na primeira epístola escrita com o propósito exortar à fé em Deus e ao amor ao próximo como caminho para a salvação, em oposição aos gnósticos que preferiam o caminho do conhecimento, afirma que Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus, “quem é o vencedor do mundo senão aquele que acredita que Jesus é o Filho de Deus?”. Daí a preocupação de João em afirmar que ele, Jesus, “veio pela água e pelo sangue”.

No texto que se lê como segunda leitura, João apresenta a fé em Cristo, “aquele que crê…”, como um novo nascimento “…nasceu de Deus”. Trata-se de nascer para uma nova forma de amor. Aquele que nasceu de novo ama quem o gerou e tudo o que por ele foi gerado, portanto, ama o próximo, o seu irmão, porque o amor a Deus e o amor ao próximo são indissociáveis. O amor a Deus que nos gerou e ao próximo que foi gerado por Deus revela-se no cumprimento dos mandamentos. O cumprimento dos mandamentos é o certificado do amor e a garantia da vitória sobre o mundo. A fé manifesta-se no amor e este no cumprimento dos mandamentos. Quem ama a Deus e ao próximo, cumpre os mandamentos e vence o mundo porque vive os critérios de Deus que estão acima dos critérios do mundo. A vitória sobre o mundo, fruto da fé e do amor, não opõe os cristãos ao mundo, mas coloca-os como testemunhas de Cristo no meio do mundo, como se percebe no evangelho de João quando ele diz “nisto conhecerão que sois meus discípulos…” (Jo 13,35).

Depois de, no domingo de Páscoa, termos acompanhado Maria Madalena na sua correria, logo de manhazinha, de casa para o sepulcro e deste para a casa onde se encontravam os discípulos, Pedro e João, o evangelho do segundo domingo, coloca-nos no meio dos apóstolos na tarde do mesmo dia, o primeiro da semana. O sepulcro, que era o centro das atenções, desaparece e o olhar centra-se, agora, na pessoa de Jesus e na fé dos apóstolos.

Podemos perceber, no texto proposto para este domingo, duas grandes cenas que se desenrolam no primeiro dia da semana e na casa dos apóstolos. Eles encontram-se de portas e janelas fechadas, isolados do mundo exterior, recusando-se a saber o que ali se está a passar, porque estão tomados pelo medo.

Nas duas cenas Jesus faz-se presente no meio deles e revela-se através dos sinais das mãos e do lado que o identificam com aquele que esteve suspenso da cruz. Perante os sinais de Cristo ressuscitado, os apóstolos veem o medo transformar-se em alegria e a incredulidade transformar-se em fé, “ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor” e “não sejas incrédulo mas crente“.

Na primeira cena Jesus introduz os discípulos na sua missão “como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós” e dá-lhes o poder de perdoar e reter o perdão concedendo-lhes a força do Espírito mediante um sopro.

Entre a primeira e a segunda cena aparece Tomé que, não estando presente naquela tarde, tem dificuldade em acreditar.

A segunda cena começa por afirmar a presença de Tomé entre os discípulos, quando Jesus, pela segunda vez, e oito dias depois, se apresenta no meio deles. As palavras de Jesus para Tomé são decalcadas nas palavras que Tomé tinha dito aos outros discípulos: “põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente”. O evangelista apresenta aqui uma relação entre ver e crer, como já tinha feito antes, na cura do filho do funcionário real “se não virdes sinais extraordinários e prodígios, não credes”. Para João, crer é mais do que ver, é ir mais além daquilo que se vê.

Perante a afirmação de Jesus, Tomé também quer ir mais além e, servindo-se da expressão do salmo 35,23 “Desperta e levanta-te para me defenderes, meu Senhor e meu Deus”, afirma a fé em Jesus.

Na conclusão, as palavras de Jesus são dirigidas a todos os que escutam o evangelho, também a nós hoje, os chamados a acreditar em Jesus sem terem visto. A estes, Jesus proclama “felizes os que acreditam sem terem visto”. O evangelista reforça, no epílogo, a relação entre a fé e a salvação, afirmando que estes factos “foram escritos para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome”.

Meditação da Palavra

Este domingo foi proclamado pelo Papa João Paulo II o Domingo da Divina Misericórdia. Foi durante a celebração da canonização de Santa Faustina que o Papa, no ano 2000, lançou o desafio a toda a Igreja para centrar a liturgia deste domingo na misericórdia de Deus.

A liturgia revela o contraste entre a liberdade de Cristo ressuscitado e a situação dos seus discípulos. Enquanto Jesus ressuscitado se torna presente em todos os lugares e não se deixa limitar por portas e janelas para se manifestar a todos, os discípulos encontram-se encerrados em casa com medo.

Os filhos de Deus nascidos da ressurreição, pela fé em Jesus e pelo batismo, vivem uma liberdade total frente a Deus, aos outros, ao mundo, aos bens espirituais e materiais e a todas as realidades e circunstâncias.

O evangelho mostra a força da presença de Jesus ressuscitado no meio da comunidade dos apóstolos reunidos no mesmo lugar, revela também a fragilidades daqueles que se deixam dominar pelo medo do mundo, que crucificou o mestre, e a incerteza e dúvida instalada nos seus corações por causa da morte que teima em ter a última palavra.

No primeiro dia da semana, a morte, vencida pelo ressuscitado, continua a impor a sua força naqueles que encontram a sua segurança nas trancas com que se fecharam dentro de casa e dentro de si mesmos. Jesus ressuscitado revela, então, o poder de quebrar as trancas e deixar entrar a luz de uma vida nova que se impõe como um nascer de novo pela água, pelo sangue, pelo espírito. Aqueles que permitem a entrada de Jesus e se deixam envolver pelo Espírito de misericórdia não recuperam apenas a alegria, descobrem a nova fonte da verdadeira alegria que é o amor a Deus e ao próximo, vivido na comunidade dos crentes e testemunhado no meio do mundo.

Um amor que se revela no cumprimento dos mandamentos, cujo núcleo centrar é a unidade, a partilha, o sentido do outro e a preocupação pelas necessidades de cada um. Numa palavra, é a misericórdia, à imitação de Deus que se mostra como providência tanto nas questões espirituais, do perdão, quanto nas materiais, do essencial para se viver com dignidade, casa, trabalho e alimento.

Fechados entre quatro paredes, os apóstolos têm dificuldades em entender a grandeza deste amor misericordioso de Deus, centro do evangelho e princípio de ressurreição, que se manifesta nas relações entre os irmãos. Quando Jesus aparece no meio deles o medo deixa de fazer sentido e eles abrem portas e janelas deixando que o mundo conheça as razões da sua esperança e o conteúdo da sua fé.

Tomé, que não estava com os outros, tem dificuldade em entender a possibilidade que se esconde na vida nova que brota no coração daqueles que acreditam que Jesus é o Filho de Deus, e na universalidade da misericórdia que se experimenta na partilha de vida e de bens da multidão dos crentes que aprenderam a viver com um só coração e uma só alma.

Confrontado com a presença de Jesus no primeiro dia da semana, Tomé deixa cair as trancas da porta interior do seu coração e começa a ver o que vê todo aquele que crê e que antes parecia impossível.

O caminho para ver Jesus é a marca dos cravos nas mãos dos irmãos e o sinal da vitória sobre o mundo é a misericórdia diante dos que não têm acesso aos bens essenciais a uma vida digna. Quem vê o irmão e se enche de misericórdia para com ele, esse vê Deus, encontra nele uma vida nova e reconhece-se amado como um filho.

Rezar a Palavra

Mostra-me, Senhor as tuas chagas nas mãos dos meus irmãos e enche de misericórdia o meu coração para viver unido aos que te procuram, aos que não conseguem ver-te e aos que perderam a dignidade de filhos.

Compromisso semanal

Quero revelar ao mundo a ressurreição de Jesus através do testemunho da unidade e da partilha.