Mistagogia da Palavra

A proclamação do reino de Deus por Jesus, neste I Domingo da Quaresma, exige-nos uma conversão profunda, que aceite existencialmente o Evangelho, quer dizer, a Boa Nova que nos liberta do materialismo mercantilista, da religião interesseira, da tirania dos ídolos. Transformar-se em cristão é morrer para o homem terreno e seus critérios antiquados e abrir-se ao homem novo em Cristo. Somente progredindo na tarefa diária e sempre inacabada desta conversão, é possível o nascimento do homem novo e, consequentemente, da terra e céus novos, que esperamos, onde habite a justiça.

A 1ª leitura é do Livro do Génesis. Após o dilúvio, que não foi um desastre provocado por Deus, mas é só um símbolo da ruína terrível que o pecado do homem provoca, Deus renova a sua aliança. É que Deus nunca Se resigna perante o mal, mas intervém para o reparar, para reconstruir, para renovar. O amor de Deus é completamente gratuito. Deus não espera que o homem seja bom para ser generoso para com ele; Ele sabe que o homem é infalivelmente pecador, mas ama-o e com seu amor transforma-o em nova criatura.

A 2ª leitura é da Primeira Epístola de S. Pedro. Pedro retoma a história do dilúvio para explicar os efeitos do Baptismo. Noé salvou-se por meio da arca que Deus lhe tinha mandado construir. A água do Baptismo produz os mesmos efeitos que a água do dilúvio: destrói o homem antigo e faz nascer o homem novo, dá origem a uma vida nova segundo o Espírito. É que Cristo morreu por todos. É Ele que comunica a Igreja o Espírito da vida e dá à água do Baptismo a força de destruir em nós o pecado e a morte e de nos ressuscitar para uma vida nova.

O Evangelho é segundo São Marcos. O Evangelista apresenta Jesus, tanto na pregação do Baptista, como no baptismo com sinais evidentes de que Ele é o Messias: é investido com a força do Espírito para realizar a obra messiânica. O ponto fundamental do Filho de Deus é luta contra Satanás. Jesus, vencendo o Demónio, não só anuncia o Evangelho de Deus, isto é, a salvação, mas a realiza e dá início ao reino de Deus. Diante dessa realidade, exige-se do homem uma mudança de mentalidade que proceda da fé.


A Palavra do Evangelho

Diante da Palavra

Vem, Espírito Santo, seduz o meu coração e impele-o para o encontro com o Pai! 

Evangelho    Mc 1, 12-15
Naquele tempo, o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás. Vivia com os animais selvagens e os Anjos serviam-n’O. Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a pregar o Evangelho, dizendo: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

Caros amigos e amigas, em tão curto relato evangélico está concentrado o resumo da vida terrena de Jesus, onde o projecto de Deus é guerreado por forças adversas. Esta é também a sorte que nos cabe… com a meta da ressurreição a reluzir no horizonte! E “não há ressurreição sem haver morte, nem triunfo se não houver batalha”! 

Interpelações da Palavra

Seduzido pelo Pai
Até parece que Jesus não foi de sua livre vontade para o deserto! Mas a expressão “foi impelido” remete-nos para uma outra do Profeta Oseias: “Por isso a atrairei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração.” (Oseías 2,16). Jesus acabou de ser batizado no rio Jordão, o grande momento forte de consciência de Filho Amado. A ida ao deserto só pode significar uma sedução vital que deseja encontrar aquela intimidade, onde nada mais pode distrair do essencial. É esta a receita que a Igreja nos apresenta para a vivência da Quaresma. Nos nossos “desertos” cheios de barulho e inquietações, cheios de solicitações e de deveres, há uma voz que no íntimo da nossa alma nos apela a um encontro. Há oportunidades irrepetíveis. Quem sabe se nesta Quaresma nos dispomos a encontrar ilhas de silêncio e de oração mais intensa, espaços de escuta da Palavra, tempos de reflexão que coloquem a nossa vida num confronto entre o que somos e o que Deus quer de nós? Que nos estimulem a estreitar a relação de amizade com Deus?! Isto é Quaresma!

Entre feras e Anjos
A descrição de Marcos sobre as tentações de Jesus é breve e essencial… pura de interpelação. Não há um relato sobre a forma, mas o facto de nos dizer que “era tentado por Satanás” revela-nos toda a gama de oposições que Jesus terá de enfrentar durante a sua peregrinação terrena. O projecto de Deus é posto à prova, os poderes do mal insurgem-se contra a construção do seu Reino, a maldade tenta derrubar os desafios da bondade, o comodismo relativiza o esforço de pautar a vida pela exigência. Foi assim no tempo de Jesus, é assim nos nossos dias. A exaltação da mediocridade tornou-se uma cruzada, escarnecer do espírito de sacrifício é um prato apreciado para qualquer tipo de humorista, nivelar os valores ao mínimo denominador comum do bem estar individual é a solução da equação do egoísmo. Mas a nós, caros amigos e amigas, Jesus chama a um ideal mais belo, aponta uma meta mais luminosa, ainda que haja um caminho de exigência a percorrer… o Evangelho!

Decidir quem Reina
Cá está Marcos a colocar-nos “entre a espada e a parede” como é seu apanágio! Jesus sai do deserto e já decidiu quem reina: é Deus! Se vivermos anestesiados pelos ditames do imediato, nem nos damos conta de que acabamos escravos das circunstâncias, somos empurrados pela corrente das modas e da superficialidade. Mas se tomamos consciência de que há um caminho com sentido, que há “horizontes grandes”, que Deus nos criou e nos cria para uma felicidade inesgotável, tomamos decisões vitais para nós e para o nosso contexto.
Caros amigos e amigas, Jesus sai do deserto e entra hoje pela Galileia das nossas vidas, sacode a consciência, a vontade e a decisão. “Arrependei-vos”, palavra milagrosa capaz de nos levar longe! Capaz de derrubar os torreões da nossa teimosia, as montanhas imperiosas das nossas justificações, as algemas dos nossos preconceitos que não nos deixam crescer, que não nos abrem às novidades de Deus. Arrepender-nos não é (como alguns crêem) um acto de fraqueza, é arma dos fortes, dos que têm coragem de corrigir os seus critérios. Arrepender-nos significa, colocar-nos em estado de inocência, prontos para inaugurar a vida nova de Deus, livres para acreditar no Evangelho!

Rezar a Palavra e contemplar o Mistério

Senhor, um dos meus conceitos de poder consiste na capacidade de alcançar os meus objectivos sem esforço. Desejaria que as pedras se tornassem em pão, e tu ensinas-me que sim:
que o pão é encontrado entre as pedras amansadas sob o meu esforço de arar,
de semear, de cuidar e de colher. Eis o milagre!
Senhor, dá-me a graça de escutar a tua Palavra, que me lembra a eficácia do sacramento
do batismo na minha vida. Que ela fecunde os meus gestos de entrega, e me faça diligente no serviço!

Viver a Palavra 

Vou reservar todos os dias momentos para a leitura e reflexão da Palavra de Deus.