Mistagogia da Palavra

A nossa vida não é senão um permanente confronto com as potências do mal. Estamos no centro do combate e, a cada momento, temos de nos decidir entre o pecado e a graça, o mal e o bem, Satanás e Deus. Mas com Cristo, que venceu o mal, também nós venceremos.
A 1ª leitura, do Livro do Deuteronómio, é a profissão de fé do povo eleito, na altura da oferta dos primeiros frutos da terra,. Por ela o povo eleito reconhece que tudo vem de Deus. Mas este gesto é acompanhado duma autêntica profissão de fé, em que se recapitulavam os acontecimentos mais importantes da História da Salvação.
Na 2ª leitura, de S. Paulo aos Romanos, é-nos dito que só a fé em Cristo Ressuscitado, proclamada com alegria e vivida até às últimas consequências, nos dá a salvação.
A 3ª leitura, de S. Lucas, fala-nos das tentações de Cristo. A tentação no Deserto foi o começo de uma luta contra o Demónio, que se prolongará por toda a vida, atingindo o auge com a Morte em Jerusalém. Como a de Cristo, a vida do cristão conhece também a prova da tentação. Mas poderá sempre ser invencível. É que Cristo Ressuscitado, que venceu definitivamente o mal, ficou na Eucaristia, para nos comunicar esse poder.

A Palavra do Evangelho

Diante da Palavra
Vinde Espírito Santo, conduz-me ao deserto do caminho e fortalece as decisões que constróis em mim.

Evangelho    Lc 4, 1-13
Naquele tempo, Jesus, cheio do Espírito Santo, retirou-Se das margens do Jordão. Durante quarenta dias, esteve no deserto, conduzido pelo Espírito, e foi tentado pelo Diabo. Nesses dias não comeu nada e, passado esse tempo, sentiu fome. O Diabo disse-Lhe: «Se és Filho de Deus, manda a esta pedra que se transforme em pão». Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem’». O Diabo levou-O a um lugar alto e mostrou-Lhe num instante todos os reinos da terra e disse-Lhe: «Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos, porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser. Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu». Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele prestarás culto’». Então o Diabo levou-O a Jerusalém, colocou-O sobre o pináculo do templo e disse-Lhe: «Se és Filho de Deus, atira-Te daqui abaixo, porque está escrito: ‘Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, para que Te guardem’; e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão, para que não tropeces em alguma pedra’». Jesus respondeu-lhe: «Está mandado: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’». Então o Diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação, retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo.


Caros amigos e amigas, o Evangelho de hoje leva-nos do rio ao deserto, mas mais do que o caminho importa a companhia. Conduzidos pelo Espírito, entramos não num espaço mas num tempo, o tempo oportuno do diálogo, coração a coração, com Deus.

Interpelações da Palavra

«Durante quarenta dias… conduzido pelo Espírito»
Contar quarenta dias é o mesmo que contar a idade de uma geração. É o tempo que nos é dado viver, entre oásis e deserto. É a oportunidade de construir a nossa história, pessoal e comunitária. O Evangelho deste I domingo da quaresma evoca que Jesus esteve quarenta dias no deserto. Ali sentiu fome. Ali foi tentado. Como nós, verdadeiramente homem, padeceu apetites, foi alvo de tentações. Mas o mais significativo é que ali foi conduzido pelo Espírito. No fundo, nesta simples expressão emerge o objetivo de cada quaresma: habituar o coração a ser conduzido pelo Espírito Santo. Para quê? Para passarmos da escravidão à liberdade, da condição de servos à condição de filhos de Deus, herdeiros não de uma terra, mas da vida plena, que sussurra ao ouvido de Deus «em Ti confio».

«Nem só de pão vive o homem»
Essa forma de vida, a que herdámos de Jesus, faz-nos reconhecer, de imediato, que nem só de pão vive o homem. Porque vivemos conduzidos pelo Espírito, para além do pão que está sobre as nossas mesas, precisamos do alimento da justiça e da paz, da verdade e da cultura, da saúde e da educação. Em suma, somos famintos do alimento da dignidade. E aqueles que acreditamos em Cristo não podemos passar sem o nutrimento da esperança. É ela que rasga o horizonte da temporalidade à eternidade. É ela que dá sentido a quanto temos e ao poder que exercemos, na medida em que tudo faz convergir para o serviço do bem comum, e na medida em que nos coloca sintonizados com Deus, colaborando com Ele.

«Ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele»
O bem comum, porém, fica comprometido e a nossa dignidade empoeirada quando prestamos culto àqueles que nos rodeiam, a nós mesmos ou à obra das nossas mãos. Somos, portanto, obrigados a adorar a Deus? Não. Não há adoração por coação, não se consegue prestar culto sem o autêntico exercício da filiação divina. Deus fez-nos livres, com a possibilidade de lhe dizer «não», para O podermos adorar sem constrangimentos. É uma vida plena, não programada, aquela que consegue dar culto a Deus, e é adorando-O somente a Ele que se alcança essa mesma vida.

«Não tentarás o Senhor teu Deus»
Com facilidade esbarramos na tentação de experimentar Deus, de O provocar. Antes de mais, quando desconfiamos do seu amor: «mas será que Deus é mesmo bom?». Não é difícil embarcar na acusa que faz d’Ele o culpado de tudo quanto existe. Já não o criador, mas o culpado. Acusá-Lo disto é adorá-Lo como quem luta, o que tem o seu lugar na nossa vida espiritual. Porém, corresponder ao «não tentarás o Senhor teu Deus» significa ir mais além, significa respeitar a geografia que nos foi dada para dialogar e conviver com Ele e com os outros. Sem este respeito, comprometido na conversão da realidade que nos habita e nos circunda, abrimos espaço à revolta, deixamos de reparar a dignidade humana e pervertemos o culto a Deus.

Rezar a Palavra
Ó Senhor, permite que me deixe guiar pelo Teu Espírito, 
quando caminho junto ao rio ou quando me sinto errante no meio do deserto. 
É Ele, o Teu Espírito, quem me alimenta daquela coragem que diminui o tamanho das tentações; 
é Ele quem me reconstói à Tua imagem, neste tempo oportuno; 
é Ele quem me une ao Teu Filho como quem me conduz para a Verdade plena. 
Sei que ao Teu Espírito devo a postura do culto. 
N’Ele, a Ti, eternamente agradecerei as vezes em que Te não provoquei e com alegria em Ti confiei.  

Viver a Palavra
No limiar desta quaresma invocarei o Espírito Santo para que, com a minha colaboração, transforme todos os espaços que eu habitar em tempos favoráveis.