Uma nova humanidade
a partir da fragilidade da nossa arca

Desce do céu, entre trovões e relâmpagos, a água do batismo que nos transforma em sementes de uma nova humanidade. Na abundância da água morre o fruto seco e velho para que, morrendo se torne princípio de uma nova vida.
O silêncio do deserto torna-se voz que vence as forças do mal, fortalece a fragilidade do barro e propõe caminhos novos para a humanidade.
Refugiados na arca velha, mas segura, atravessamos a tempestade que ameaça a nossa existência.

LEITURA I Gn 9, 8-15

Deus disse a Noé e a seus filhos: «Estabelecerei a minha aliança convosco, com a vossa descendência e com todos os seres vivos que vos acompanham: as aves, os animais domésticos, os animais selvagens que estão convosco, todos quantos saíram da arca e agora vivem na terra. Estabelecerei convosco a minha aliança: de hoje em diante nenhuma criatura será exterminada pelas águas do dilúvio, e nunca mais um dilúvio devastará a terra». Deus disse ainda: «Este é o sinal da aliança que estabeleço convosco e com todos os animais que vivem entre vós, por todas as gerações futuras: farei aparecer o meu arco sobre as nuvens, que será um sinal da aliança entre Mim e a terra. Sempre que Eu cobrir a terra de nuvens e aparecer nas nuvens o arco, recordarei a minha aliança convosco e com todos os seres vivos, e nunca mais as águas formarão um dilúvio para destruir todas as criaturas».

Noé é o símbolo de todos aqueles que permanecem fiéis a Deus, mesmo no meio de uma sociedade que se esqueceu de Deus. Como para Noé, agradar a Deus há de ser mais importante do que seguir pelos critérios dos homens.

Salmo responsorial Sl 24 (25), 4bc-5ab. 6-7bc. 8-9 (R. cf. 10)
De acordo com o salmo, o Senhor ensina aos homens os seus caminhos de amor e verdade. Deixar-se ensinar é entrar na dinâmica da aliança, pela qual os pecadores são salvos, graças à misericórdia e à bondade do Senhor.

LEITURA II 1Pd 3, 18-22

Caríssimos: Cristo morreu uma só vez pelos pecados – o Justo pelos injustos – para vos conduzir a Deus. Morreu segundo a carne, mas voltou à vida pelo Espírito. Foi por este Espírito que Ele foi pregar aos espíritos que estavam na prisão da morte e tinham sido outrora rebeldes, quando, nos dias de Noé, Deus esperava com paciência, enquanto se construía a arca, na qual poucas pessoas, oito apenas, se salvaram através da água. Esta água é figura do Batismo que agora vos salva, que não é uma purificação da imundície corporal, mas o compromisso para com Deus de uma boa consciência; ele vos salva pela ressurreição de Jesus Cristo, que subiu ao Céu e está à direita de Deus, tendo sob o seu domínio os Anjos, as Dominações e as Potestades.

Os cristãos perseguidos encontram em Cristo o seu modelo no meio das perseguições e no batismo a vida nova que lhes dá a garantia da vida eterna.

EVANGELHO Mc 1, 12-15

Naquele tempo, o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás. Vivia com os animais selvagens, e os Anjos serviam-n’O. Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a pregar o Evangelho, dizendo: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

Consciente de que viver é sofrer tentações, Jesus, após o Batismo, impelido pelo Espírito dá início à sua vida profética proclamando o evangelho na Galileia.

Reflexão da Palavra

O primeiro domingo da Quaresma coloca-nos diante de um texto do livro de Génesis. Não é particularmente fácil compreender este livro nas diversas tradições que ali se misturam. Deixamos isso para os especialistas e vamos ao encontro da Palavra de Deus e do Deus da Palavra. O livro de Génesis, assim como todo o Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) não são livros de história segundo o nosso conceito de história. Aqui não interessam os factos históricos, mas o plano de Deus que se realiza através e apesar dos factos da história.

Assim, o texto que se lê na primeira leitura, não sendo o relato de um facto histórico, é um marco na história de Israel e no plano de Deus. O homem criado por Deus, do pó da terra, não foi capaz de permanecer na aliança de amizade e harmonia (Gn 1,26-31). A degradação do género humano após o pecado de Adão faz com que Deus se arrependa de ter criado o homem (Gn 6,5-6) e decida mandar o dilúvio como purificação da humanidade pecadora (Gn 7,17-24). Começa assim, uma nova etapa na história da humanidade, com Noé, porque ele “era agradável aos olhos do Senhor (6,8).

Depois das águas baixarem e Noé ter saído da arca com a sua família e os animais, Deus faz com ele uma nova aliança, a segunda entre Deus e os homens. Esta nova etapa do plano de Deus, tal como a primeira, precisa da bênção de Deus. A Adão e Eva Deus “abençoou-os dizendo-lhes: ‘Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra” (Gn 1,28), e nesta nova etapa “Deus abençoou Noé e os seus filhos”, com a mesma ordem “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 9,1).

Nesta aliança, Deus não exige nada da parte do homem, apenas ele se compromete e deixa um sinal desse seu compromisso. A aliança de Deus com Noé implica toda a criação e até o sinal faz parte das coisas criadas, o arco íris. Esta aliança é um compromisso de Deus no sentido de dar continuidade à história dos homens, mantendo ele a atitude de misericórdia para com o homem que é pecador.

Esta aliança, bênção e o compromisso de Deus, representa uma nova criação, um começar de novo, fruto da misericórdia de Deus e apesar da condição do homem diante de Deus.

O salmo 24 que já encontrámos na liturgia do XXVI domingo comum do ano A, é o reconhecimento da misericórdia de Deus e o seu compromisso com a aliança. Ao mesmo tempo reforça a ideia de que o homem, se não for ensinado, não permanecerá nos caminhos do Senhor, na sua verdade e justiça.

Atribuída a Pedro, a primeira carta, é dirigida a cristãos de origem pagã da região da Ásia Menor que vivem momentos de perseguição no início da sua adesão a Cristo, o que preocupa o apóstolo.

A estes cristãos, Pedro apresenta, no texto da segunda leitura, o exemplo de Cristo que também padeceu, mostrando que, como ele, podem chegar à direita de Deus. Este é o destino de todos os que são agradáveis aos olhos de Deus, como é o caso de Noé. Os cristãos recebem o Batismo que é um mergulho nas águas mais poderosas que as do dilúvio. Noé salva-se passando pela experiência das águas, os cristãos salvam-se pela purificação da consciência no Batismo que é participação na ressurreição de Jesus. Pelo mistério do sofrimento de Cristo, cujo fruto recebemos no Batismo, até os “espíritos incrédulos” do tempo de Noé se salvam, “foi pregar também aos espíritos cativos”.

Marcos leva-nos até ao deserto com Jesus para vivermos com ele os quarenta dias de tentação e assistirmos ao início da sua vida pública.

Imediatamente após o Batismo de Jesus, o Espírito desce sobre ele e, imediatamente, “impeliu Jesus para o deserto”. Marcos revela um Jesus com pressa. A sua missão é urgente e não se pode perder tempo. A urgência é a salvação do homem, por isso, não há tempo a perder. Por outro lado, Marcos pretende dizer que, desde o início, no deserto ou no meio da multidão, ensinando ou fazendo milagres, na cruz e na ressurreição, Jesus é sempre conduzido, “impelido”, pelo Espírito.

No deserto durante quarenta dias, ou seja, ao longo de toda a vida, Jesus é tentado. Não se trata apenas de um momento transitório, uns quantos dias antes da sua vida pública, mas da vida toda. Ao contrário de outros evangelistas, Marcos não diz quais as tentações experimentadas por Jesus, sabemos apenas que “era tentado”.

O deserto é o lugar das forças do mal, das forças tentadoras, representadas por Satanás e pelos animais selvagens. Marcos quer apresentar Jesus como aquele que enfrenta as forças adversas do mal e sai vitorioso. Ali, onde reinam as forças do mal, também se pode manifestar a força salvadora de Deus, por isso, Marcos afirma que no meio das tentações Jesus é servido pelos anjos. A vitória é de quem vence a tentação e domestica as feras.

A segunda parte do evangelho, que já refletimos no III domingo comum, dá início à missão profética de Jesus. Termina aqui a missão de João Batista e começa a missão de Jesus, numa continuidade descontínua, na medida em que a missão de João prepara a vinda de Jesus e a missão de Jesus supera a de João. A missão de Jesus começa na Galileia e consiste em “proclamar” uma mensagem que não tem fronteiras, destina-se a todos os homens independentemente da raça, do credo ou da situação moral. De todos Jesus se faz próximo, com preferência para com os pecadores a quem chama à conversão.

A mensagem de Jesus, o evangelho que ele anuncia e ao qual todos devem aderir pela conversão e pela fé, não é uma ideia, uma filosofia, nem uma religião. O conteúdo do evangelho é ele mesmo “arrependei-vos e acreditai no Evangelho. Isto significa, ‘acreditai e aderi a mim’.

“Cumpriu-se o tempo”, diz Jesus, chegou o tempo oportuno para que se realize o Reino de Deus entre os homens. Converter-se e acreditar são dois requisitos para passar do reino de Satanás, já vencido por Jesus no deserto das tentações, e entrar no reino de Deus. Converter-se significa mudar de mentalidade e acreditar é aderir à pessoa de Jesus, tornando-se seu discípulo.

Meditação da Palavra

Depois de criar todas as coisas, incluindo o ser humano, Deus viu que tudo era bom, como se lê em génesis 1,31 “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa”. No entanto, o Homem, criado livre, não para de dececionar a Deus. Primeiro Adão, depois Caim e por fim toda a humanidade. No relato da história de Noé já se diz que, quando “os homens se começaram a multiplicar sobre a terra” (Gn 6,1) “o Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na terra que todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal” (Gn 6,5).

Apesar disso, Deus não desiste do Homem e acompanha de perto a história da humanidade recriando continuamente este mundo e refazendo o coração do Homem para que regresse sempre ao seu amor. É um processo de pecado e purificação, é um caminho de alianças contínuas, nas quais Deus se compromete mais do que o homem.

O texto de Génesis que nos aparece na primeira leitura é um desses momentos em que Deus, depois de uma grande deceção, não encontrando mais ninguém agradável aos seus olhos, a não ser Noé e seus filhos, lança uma operação de limpeza e purificação da humanidade marcada pelo pecado. Enquanto o pecado da humanidade submerge nas águas do dilúvio, Deus dá início a uma nova humanidade através de Noé, durante os quarenta dias em que esteve encerrado com os animais dentro da arca.

Após a purificação, Deus compromete-se de modo explicito com Noé, com a sua descendência e com toda a criação, “a aliança que estabeleço convosco e com todos os animais que vivem entre vós, por todas as gerações futuras”. É a primeira aliança depois da criação, na qual, apenas Deus se compromete “sempre que Eu cobrir a terra de nuvens e aparecer nas nuvens o arco, recordarei a minha aliança convosco”. É também um momento de bênção que renova a bênção inicial: “Deus abençoou Noé e os seus filhos, e disse-lhes: “sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra”.

Ao longo da história da salvação Deus vai fazendo alianças com o Homem, porque não desiste dele. Depois de Noé vem a aliança com Abraão acompanhada da promessa de uma descendência e de uma terra e, mais tarde, a aliança com Moisés juntamente com a entrega dos dez mandamentos.

Mas a grande aliança de Deus com os homens, aquela que oferece o início de uma nova humanidade, vai realizar-se através do seu filho, Jesus Cristo.

O texto de Marcos pretende apresentar Jesus a todos os leitores e fá-lo de forma concisa como se percebe no início do evangelho, onde refere que Jesus é o Filho de Deus (1,1) que vem batizar no Espírito Santo (1,8). No texto deste domingo, Marcos pretende dizer que este Jesus, Filho de Deus, é também homem, vive a mesma condição dos homens sujeito à tentação, entre a voz de Deus e a voz de Satanás, entre os anjos e os animais selvagens.

Como todos os homens, Jesus pode escolher cair na tentação e tornar-se como os animais selvagens que não têm lei. Mas escolhe ouvir a voz de Deus e acolher os bens do céu que lhe são servidos pelos anjos. Escolhe tornar-se evangelho, boa notícia para o homem que experimenta na sua vida a dureza do deserto.

Trata-se de uma experiência que dura a vida toda, entre tentações e renuncias para fazer em todas as coisas a vontade de Deus. Se os filhos de Israel sucumbiram muitas vezes às tentações do deserto correndo o risco de não chegarem à terra prometida, Jesus vence as tentações e torna-se lugar seguro para toda a humanidade chegar ao seu destino último, a direita do Pai.

Esta experiência representa uma luta diária por entre as mais diversas circunstâncias da vida que se apresenta muitas vezes como prova à nossa liberdade. Os cristãos da Ásia Menor percebem muito bem a dimensão desta luta. Gente simples que aderiu ao evangelho na esperança de encontrar em Cristo esta segurança, vêm-se ameaçados pela onda de incompreensão que se levanta na região contra o cristianismo. Diante da ameaça correm o risco de desistir do evangelho, de perder a esperança que depositaram em Cristo e abandonar a fé. Pedro recorda-lhes o exemplo de Cristo que também passou pelo sofrimento mas permaneceu fiel e agora “está à direita de Deus”. Coloca-os na perspetiva do “Batismo que agora vos salva… pela ressurreição de Jesus Cristo” e que é “compromisso para com Deus de uma boa consciência”.

No início da quaresma somo nós quem se confronta com a proposta de Jesus, “arrependei-vos e acreditai no evangelho”. Os nossos quarenta dias são símbolo de uma vida inteira dedicada a lutar contra as tentações e a encontrar em Cristo os sinais da vitória que só ele garante, confiando que na sua morte e ressurreição está o caminho para a direita do Pai.

Lugar de tentações, a vida é também lugar onde é possível renovar continuamente aquele amor que experimentámos no primeiro encontro com Deus. Esta quaresma pode ser o início de uma nova humanidade, recriada a partir do amadurecimento da nossa liberdade no deserto interior e da adesão a Cristo renovando o compromisso do nosso batismo.

Rezar a Palavra

No deserto da minha vida traça os teus caminhos, Senhor, com as cores da misericórdia e da bondade para que regresse sempre a ti. Lembra-te de mim, porque me criaste e renovaste nas águas do batismo e faz de mim uma semente da nova humanidade que iniciaste com a ressurreição de teu filho Jesus Cristo.

Compromisso semanal

Inicio o caminho quaresmal com a serenidade de quem confia na misericórdia de Deus e no seu poder contra o mal.