Tem compaixão de mim, Senhor!
Passam os anos e não chegamos a conhecer o mais íntimo do coração, a raiz das grandes decisões e os motivos dos desassossegos. Passam os anos e continuamos estranhos dentro desta condição humana que nos acompanha a vida toda.
Diante da vida, é urgente uma resposta capaz de revelar o mistério que nos encerra, desde aquele altíssimo e profundo primeiro olhar que nos criou e nos libertou, o olhar divino.
Diante de nós está a transparência do amor que nos revela o que somos e a possibilidade de confessar “sou um homem pecador” e suplicar “tem compaixão de mim, Senhor”.
A vida espera a coragem de confiar que basta apenas dizer: “Tem piedade de mim, Senhor” para jorrar dentro de nós a verdadeira e sempre renovada alegria.
LEITURA I Gn 2, 7-9; 3, 1-7
O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, insuflou em suas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivo. Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, a oriente, e nele colocou o homem que tinha formado. Fez nascer na terra toda a espécie de árvores, de frutos agradáveis à vista e bons para comer, entre as quais a árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal. Ora, a serpente era o mais astucioso de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: «É verdade que Deus vos disse: ‘Não podeis comer o fruto de nenhuma árvore do jardim’?». A mulher respondeu: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus avisou-nos: ‘Não podeis comer dele nem tocar-lhe, senão morrereis’». A serpente replicou à mulher: «De maneira nenhuma! Não morrereis. Mas Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como deuses, ficando a conhecer o bem e o mal». A mulher viu então que o fruto da árvore era bom para comer e agradável à vista, e precioso para esclarecer a inteligência. Colheu fruto da árvore e comeu; depois deu-o ao marido, que comeu juntamente com ela. Abriram-se então os seus olhos e compreenderam que estavam despidos. Por isso, entrelaçaram folhas de figueira e cingiram os rins com elas.
Com uma linguagem muito própria, o livro do Genesis, ensina que a liberdade do homem pode chegar até ao ponto de cortar a sua relação com Deus. A tentação de ocupar o lugar de Deus e prescindir dele é grande e atraente, mas esconde o drama existencial do homem, que é a sua fragilidade. Afinal, sem Deus, o homem está nu.
Salmo responsorial Sl 50 (51), 3-4.5-6a.12-13.14.17 (R. cf. 3a)
O Salmo 50 apresenta, numa primeira parte, a confissão do homem pecador e na segunda, a riqueza de Deus de que o homem necessita. Fruto das suas decisões, o homem, está marcado por pecados, iniquidades, delitos e culpas. Nesta situação, recorre a Deus que é bondade e compaixão, sinceridade e sensatez, gozo e alegria. Da situação de pecado só Deus o pode libertar, lavar, purificar e limpar. O que o homem pede, só Deus lhe pode conceder. Trata-se de recriar, fazer de novo, renovar.
LEITURA II Forma longa Rm 5, 12-19
Irmãos: Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, assim também a morte atingiu todos os homens, porque todos pecaram. De facto, até à Lei, existia o pecado no mundo. Mas o pecado não é levado em conta, se não houver lei. Entretanto, a morte reinou desde Adão até Moisés, mesmo para aqueles que não tinham pecado por uma transgressão à semelhança de Adão, que é figura d’Aquele que havia de vir. Mas o dom gratuito não é como a falta. Se pelo pecado de um só todos pereceram, com muito mais razão a graça de Deus, dom contido na graça de um só homem, Jesus Cristo, se concedeu com abundância a todos os homens. E esse dom não é como o pecado de um só: o julgamento que resultou desse único pecado levou à condenação, ao passo que o dom gratuito, que veio depois de muitas faltas, leva à justificação. Se a morte reinou pelo pecado de um só homem, com muito mais razão, aqueles que recebem com abundância a graça e o dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo. Porque, assim como, pelo pecado de um só, veio para todos os homens a condenação, assim também, pela obra de justiça de um só, virá para todos a justificação, que dá a vida. De facto, como pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, todos se tornarão justos.
O ato livre de Adão levou a humanidade pelo caminho da desobediência, que conduziu ao pecado e à morte. A vontade salvífica de Deus revela-se na obediência de Cristo, como solidariedade com toda a humanidade. Quem decide seguir com Jesus, encontra nele a vida e a graça.
EVANGELHO Mt 4, 1-11
Naquele tempo, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a fim de ser tentado pelo Diabo. Jejuou quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães». Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’». Então o Diabo conduziu-O à cidade santa, levou-O ao pináculo do templo e disse-Lhe: «Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo, pois está escrito: ‘Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’». Respondeu-lhe Jesus: «Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’». De novo o Diabo O levou consigo a um monte muito alto, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e disse-Lhe: «Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares». Respondeu-lhe Jesus: «Vai-te, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto’». Então o Diabo deixou-O, e aproximaram-se os Anjos e serviram-n’O.
Para muitos, ser Filho de Deus, é ter Deus sempre à disposição dos seus interesses e urgências, para viverem sem problemas. O tentador serve-se dessa ilusão para convencer Jesus a provar que é Filho de Deus. Jesus, porém, entende de modo diferente a sua relação com o Pai. Ele é o Filho que obedece e não o filho que põe o Pai à prova.
Reflexão da Palavra
Construído a partir de várias tradições, o livro do Genesis começa com a descrição da criação do mundo e do homem segundo a tradição sacerdotal e depois apresenta a criação do homem e da mulher segundo a tradição Javista, de onde é tirado o texto da primeira leitura. A intenção do autor é apresentar a criação do homem e da mulher e manifestar o seu pecado, para logo revelar o plano de Deus para a salvação do homem.
Nas linhas da primeira leitura passa-se rapidamente da criação do homem, a partir do pó da terra e animado pelo sopro da vida, para a tentação. Deus colocou o homem no Éden e dei-lhe liberdade para usufruir de tudo o que está no jardim mas, surge a serpente.
Entre Deus e o homem há uma ligação, pertencem-se na obediência e reconhecimento mútuos, o que engrandece o homem. Esta ligação está representada na árvore. Enquanto vigorar esta relação estável e fiel o homem vive de Deus, no dia em que esta relação for quebrada o homem experimenta a sua fragilidade.
A descrição da tentação também é interessante. Começa com um exagero que pretende apresentar Deus como o impedimento para a liberdade do homem, “não podeis comer o fruto de nenhuma árvore”. A mulher tenta repor a verdade dizendo que apenas estão proibidos de comer daquela árvore. No entanto, ela própria cai no exagero de afirmar que nem lhe podem tocar: “não podeis comer, nem tocar-lhe, senão morrereis”. Perante esta resposta, a serpente aproveita para convencer a mulher que ninguém tem o direito de lhe dizer o que está certo ou errado, o que é bem e o que é mal: “abrir-se-ão os vossos olhos…, ficando a conhecer o bem e o mal”.
Para explicar a intervenção de Deus na salvação do homem, caído no pecado e sujeito à morte, Paulo serve-se da comparação entre Adão e Jesus. Adão, origem da humanidade pecadora, encarna o pecado e a morte, Jesus é a origem da humanidade redimida, ele é a fonte da salvação porque nele estão a graça e a vida. Por Adão entra o pecado no mundo, por Jesus entra a graça. Em Adão a humanidade está condenada e em Jesus está salva. Em Adão, a solidariedade de um, conduz ao pecado, em Jesus, a solidariedade de um, traz a salvação para todos. Não se trata, porém, de uma fatalidade, mas de uma opção. Assim como optaram em Adão pelo pecado e todos pecaram, todos têm que optar por Jesus para encontrar nele a salvação. A desgraça de Adão vem pela desobediência e a graça vem de Jesus pela obediência.
O texto de Mateus apresenta uma introdução que coloca Jesus no deserto, para onde foi conduzido pelo Espírito para ser tentado, depois de quarenta dias de jejum. A seguir, são apresentadas três cenas que correspondem a três tentações, em lugares diferentes, onde se confrontam Jesus e o tentador.
O contexto pretende afirmar que Jesus é o Filho de Deus a partir da sua obediência ao Pai e não, como pretende o tentador, que o filho mostre o seu poder desafiando o Pai a vir em seu auxílio.
A primeira tentação tem como cenário o deserto, quarenta dias de jejum e a fome. É a experiência do povo de Deus que, caminha durante quarenta anos no deserto reclamando o pão e a água para saciar a fome e a sede. Ao contrário de Israel, Jesus vence a tentação reconhecendo na palavra de Deus o verdadeiro alimento.
A segunda tentação dá-se no templo, lugar onde Deus habita, e tem como fundamento a confiança em Deus. Se és filho de Deus confia que Deus te vem apanhar antes que teus pés cheguem ao chão. Deus é de fiar? Vale a pena confiar nele? Ele está mesmo no meio de nós? A resposta de Jesus revela a total confiança no Pai e a consciência de que o filho não põe o Pai à prova, como o fizeram os israelitas em Meribá e Masá.
Na terceira tentação, o tentador coloca Jesus sobre um alto monte para lhe oferecer todos os reinos da terra com a sua glória. A tentação é curiosa porque, o poder, como afirma Jesus aos discípulos após a ressurreição, foi-lhe dado pelo Pai. Não é o tentador quem tem o poder e a glória. O poder vem do Pai.
A conclusão do texto revela que Jesus, aquele que recusa servir o tentador, é servido pelos anjos.
Meditação da Palavra
Neste primeiro domingo da quaresma somos confrontados com a nossa condição de pecadores. O Salmo 50 traduz os nossos sentimentos perante a fragilidade e insensatez das nossas opções.
O uso da liberdade, faculdade com que Deus nos quis enriquecer, nem sempre nos leva pelos caminhos da harmonia interior. Seduzidos por uma forma de vida sem regras, sem limitações, sem impedimentos, sem assumir responsabilidades, não discernimos sobre o que mais nos convém. Convencidos do nosso eu e donos do nosso destino, não contamos com os outros ou transformamo-los em adversários que impedem a realização dos nossos sonhos. Ávidos de plenitude, queremos conhecer, dominar e controlar os mistérios da vida e da eternidade, do presente e do futuro e encontramos em Deus um entrave: “não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal”.
O livro do Genesis revela esse sonho do homem, que se desencontra de si, do outro e de Deus e acaba percebendo que, sem Deus, está despido. É a grande experiência existencial do salmista: Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos”.
Paulo recorda que, embora pecadores, podemos refazer a vida se tomarmos a decisão de seguir com Jesus. Pela desobediência de Adão entrou o pecado no mundo e, como consequência, entrou também a morte. No entanto, Deus enviou o seu Filho ao mundo para que o homem viva. E, pela obediência de Cristo, entrou no mundo o poder da graça que recria o homem, não já na sua condição terrena, mas celeste: “Criai em mim, ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme”.
Na verdade, caído no pecado, o homem só pode ser restaurado mediante o amor misericordioso de Deus. O mesmo amor que criou o homem, tem poder para o recriar como o oleiro faz ao barro, de modo que não se note a pobreza da criatura, mas a riqueza das mãos do criador.
Apesar da fragilidade impressa na natureza humana, herdada de Adão, aquele que decide seguir Jesus, encontra nele a força para vencer a tentação que derrotou os nossos pais diante da serpente.
Com efeito, como relata Mateus no evangelho, a tentação, embora acompanhe o homem ao longo de toda a sua vida, não tem que ter a última palavra. A Palavra de Deus é a última resposta para o homem se salvar diante da possibilidade de decidir contra si mesmo, contra os outros e contra Deus.
O discernimento a partir da palavra, a exemplo de Jesus, é o segredo para não se cair na ilusão de que é possível uma vida mais feliz, uma liberdade mais plena, um futuro mais brilhante, sem Deus.
Cuidamos muito da fome corporal quando “nem só de pão vive o homem” e muito pouco da fome de Deus, quando devemos viver “de toda a palavra que sai da boca de Deus”.
Somos muito rápidos a reclamar o auxílio de Deus nas nossas urgências e aflições, para que “os teus não se firam em alguma pedra” e muito pouco disponíveis para aceitar a vida como ela se apresenta sem por Deus à prova, “não tentarás o Senhor teu Deus!”
Criamos muito facilmente desejos de grandeza e de poder, querendo ganhar o mundo inteiro, “tudo isto te darei”, e muito pouco disponíveis para dar a vida no desprendimento e na pobreza, “adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto”.
O primeiro domingo da quaresma mostra que o mal está dentro do coração do homem e só um coração novo pode expulsar o mal e encontrar em Deus a alegria de viver. Adão e Eva, que representam a humanidade de todos os tempos, também a nós, têm um coração rebelde, inclinado para o mal e caem na tentação. Jesus, o novo Adão, mostra que é possível vencer a tentação se o coração estiver centrado em Deus e disponível para o servir, amar e adorar. Paulo afirma que todo aquele que adere ao projeto de Cristo encontra nele o poder que recria os corações.
Rezar a Palavra
Senhor, tu que te compadeces do homem pecador e não desvias o olhar daqueles que se afastam da tua presença, tem compaixão de mim e purifica-me de todas as faltas. Dá-me um coração puro e renova em mim o teu espírito de santidade. Faz-me viver segundo o teu espírito e concede-me a tua salvação.
Compromisso semanal
Renovo em Deus o meu pobre coração para que se veja o seu poder criador na minha fragilidade.