Mistagogia da Palavra

A liturgia deste Domingo reveste-se de dois aspectos, à primeira vista contraditórios. Fala-nos do triunfo e glória, para, logo a seguir, nos falar em sofrimentos e paixão. Reunindo acontecimentos tão contrastantes, a Liturgia não tem outro intento senão apresentar-nos a figura de Jesus, no seu aspecto de rei messiânico, e, ao mesmo tempo, de “Servo do Senhor”. Na verdade, a entrada triunfal em Jerusalém conduz à Paixão do Salvador. Mas, por outro lado, a Paixão só é plenamente compreendida por aquele que reconhece o carácter messiânico de Jesus Cristo. O caminho pelo qual Ele se dirige para Jerusalém está já iluminado pelos clarões da Ressurreição.
Na bênção solene dos ramos é proclamado o relato de S. Lucas da entrada de Jesus em Jerusalém como Messias. É já o anúncio da Ressurreição e, ao mesmo tempo, o anúncio da Vinda gloriosa do Senhor no fim dos tempos, para introduzir na Jerusalém celeste todos os que O seguiram na caminhada da vida.
Na 1ª Leitura da Missa, do Livro do profeta Isaías, fala-se do “Servo de Deus”. Este “Servo” será Jesus Cristo, que se oferece como vítima pelos homens, seus irmãos. Entregando-se confiadamente à vontade do Pai, seguro de que Ele o assistirá, não hesita em cumprir a sua missão, que O levará à morte. Na sua humilhação, Deus far-Lhe-á conhecer a exaltação.
A 2ª leitura é de S. Paulo aos Filipenses. Para resgatar a humanidade da desobediência de Adão, Jesus, depois de Se ter despojado das suas prerrogativas divinas pela Encarnação, sempre em filial obediência ao Pai, submete-Se a todas as contingências da sua condição humana, a sua humilhação vai até à cruz. No aniquilamento da morte começa, porém, a sua elevação à glória.
O relato da Paixão é de S. Lucas. Evangelista da misericórdia, é sobretudo a bondade que brilha no seu relato. Envolto no clarão da Divindade, Jesus é apresentado como aquele que combate contra o poder das trevas não pela força exterior, mas pela força de alma e pela bondade. Essa bondade manifesta-se para com Pedro, as mulheres de Jerusalém e o bom ladrão. Uma atmosfera de serenidade e de misericórdia envolve, na verdade, a Pessoa do Salvador.

A Palavra do Evangelho

Diante da Palavra

Vem, Espírito Santo, inspirar-me a grandeza do perdão que passa e perpassa no olhar de Jesus! 

Evangelho    Lc 22, 14 – 23, 56
Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, crucificaram-n’O a Ele e aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem». (…) Os chefes zombavam e diziam: «Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito». Também os soldados troçavam d’Ele; (…) diziam: «Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo». (…) Entretanto, um dos malfeitores que tinham sido crucificados insultava-O, dizendo: «Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também». Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o: «Não temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo das nossas más acções. Mas Ele nada praticou de condenável». E acrescentou: «Jesus, lembra-Te de mim, quando vieres com a tua realeza». Jesus respondeu-lhe: «Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso». Era já quase meio-dia, quando as trevas cobriram toda a terra, até às três horas da tarde, porque o sol se tinha eclipsado. O véu do templo rasgou-se ao meio. E Jesus exclamou com voz forte: «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito». Dito isto, expirou. Vendo o que sucedera, o centurião deu glória a Deus, dizendo: «Realmente este homem era justo».


Caros amigos e amigas, eis exposto ao escárnio do mundo o Filho de Deus, em cujo rosto não se vislumbra qualquer sombra de ódio, de ressentimento ou de vingança. O seu olhar de bondade, de mansidão e perdão, cura-nos de todas as mágoas e feridas, fazendo-nos participar, «quando chegar a hora», da Sua Páscoa que se realizará “plenamente no Reino de Deus”.

 
Interpelações da Palavra

No meio de aclamações, mas para receber a Paixão-Ressurreição…
Com o domingo de Ramos, iniciamos a semana grande do ano litúrgico. Lucas construiu a sua narrativa do Evangelho como um caminho que Jesus vai percorrendo em sucessivas etapas. Por isso, não se esqueceu de nos repetir, continuamente, que Jesus caminhava como o profeta dos últimos tempos, e, sobretudo, caminhava para Jerusalém, onde ia acontecer a sua Paixão e Ressurreição. A etapa da Paixão-Ressurreição é, pois, a última da sua caminhada na terra. Meditemo-la sem pressas e detendo-nos em cada momento, situação, personagens, atitudes e sentimentos.

Contemplemos Jesus…
O Evangelista mostra-nos, hoje, o rosto de um Jesus misericordioso, o Filho Único de Deus, permanentemente em oração. Filho que reza em agonia, mas que, ainda assim, tem tempo para dar alento aos seus discípulos em crise e tribulação. Um Jesus que olha com amor o Apóstolo Pedro, depois da tríplice negação, para que o pobre e futuro chefe da Igreja não desespere do seu pecado. Um Jesus que, já exaurido das suas forças, consola pelo caminho as mulheres de Jerusalém, com palavras doces e cheias de ternura. Um Jesus que reza por aqueles que O perseguem e pede por eles perdão ao Pai, porque sabe que não sabem o que fazem. Um Jesus, de braços abertos, que abre as portas do Paraíso ao ladrão arrependido. Um Jesus que se entrega ao Pai, numa prece de rendição, de despedida e oração.

Ouçamos como quem vê… 
Nós ouvimos tudo isto. Mas precisamos, mais uma vez, de não saber de cor. Precisamos de ouvir como quem vê. Para quê? Para nos convertermos à verdade nua e crua desta paixão, que, mais do que sentimento, é da parte de Jesus um acto de vontade, que nos provoca o arrependimento. Aproveitemos este domingo para “ver Jesus”. Ver para crer, para descobrir as duas faces do Crucificado e do Ressuscitado, para darmos de cara com a vida, tal qual ela é, nesse passo permanente da cruz para a luz, da dor para o amor. Crer para O seguir. Segui-l’O para encontrar n’Ele a Vida.

E deixemo-nos olhar…
É que o olhar de Jesus também pode tocar o nosso coração. Pedro encontra o olhar de Jesus e, nesse olhar, compreende todo o horror da sua traição, vê toda a sua miséria; compreende, porém, simultaneamente, que é amado mais ternamente que nunca, que existe para ele uma esperança de reabilitação e de salvação. E Pedro desfaz-se em lágrimas, lágrimas pelas quais o seu coração fica imediatamente purificado. A dita de Pedro foi ter encontrado e aceite o olhar de Jesus. Não será a nossa?


Rezar a Palavra 

“Se é assim, Senhor, que tudo quereis sofrer por mim, o que é isto que agora sofro por Vós? De que me queixo? Até me sinto envergonhada de Vos ter visto assim! Eu quero, Senhor, sofrer todos os trabalhos que me vierem, e tê-los em grande bem por vos imitar nalguma coisa” (Santa Teresa de Jesus, Caminho de Perfeição)


Viver a Palavra 
Perseveremos nesta procura e neste desejo de “ver Jesus”, porque disso depende 
a nossa realização e a nossa alegria!…